Por Altamir Pinheiro

No filme faroeste Meu Ódio Será Sua Herança começa com um grupo de policiais uniformizados, montados a cavalo, entrando numa pequena cidade norte-americana. O bando cruza com crianças que brincam no meio da rua, perto dos trilhos de um trem. Algumas tomadas esparsas mostram que a brincadeira infantil é um bocado cruel: os meninos jogaram escorpiões no meio de um formigueiro, e os bichos venenosos estão sendo devorados pelas formigas. “Meu Ódio Será Sua Herança” encerra enfocando os remanescentes do mesmo grupo de homens que aparece no princípio. Eles não são policiais, e sim uma quadrilha de assaltantes de banco; aquele era apenas um disfarce, como o espectador logo vai descobrir, na movimentada e sangrenta sequência que abre o filme com gosto de pólvora.
Não há heróis na película nem muito menos vilões. Na ocasião do fim do filme, os bandoleiros estão no México, e se dirigem para resgatar um dos membros do grupo. O violentíssimo tiroteio que se segue não apenas encerra o filme de maneira brilhante, mas fecha um círculo e explica a cena dos escorpiões da abertura; os escorpiões são uma metáfora para os bandidos. Os escorpiões são intrigantes porque jamais estiveram no roteiro do longa-metragem. Na verdade, eles foram uma sugestão de Emilio Fernandez, que contou ao cineasta Sam Peckinpah como se divertia no deserto mexicano, quando era menino. Peckinpah percebeu a fascinante simetria e filmou o ataque das formigas aos escorpiões abusando de planos-detalhe. Ao fazê-lo, acabou concebendo uma das aberturas mais estranhas, criativas e interessantes do cinema contemporâneo.
Naquela oportunidade da filmagem nos poeirentos caminhos mexicanos, é possível que o diretor não soubesse que estava colocando uma pá de cal no já combalido gênero western. Adepto dos chamados westerns crepusculares, que lamentavam a proximidade do fim do gênero por causa do crescente desinteresse das novas gerações de espectadores, “Meu Ódio Será Sua Herança” transportava para a história este lamento. Foi uma despedida honrosa e adequada, já que o filme não é ambientado nos anos de ouro do Velho Oeste, mas em 1913. Às vésperas da Revolução Mexicana, o antigo código de honra dos homens violentos e beberrões já não valia mais nada. O mundo agora era urbano. Botas viravam sapatos engraxados, revólveres transformavam-se em metralhadoras. A violência migrava dos descampados empoeirados para as cidades grandes. Segundo o comentarista Paulão, “O Velho Oeste dava os últimos suspiros”. Esse é o grande tema da obra de Sam Peckinpah, e também o pano de fundo do mais controverso e impactante dos filmes que o apóstolo da violência dirigiu.
O poeta e tradutor Paulo Ramos nos traz ou nos faz uma explanação brilhante desse monumental cineasta. Diz ele: o “poeta da violência”, conseguiu revisitar o faroeste de maneira a demonstrar a derrocada do romantismo que permeava as narrativas dessa estirpe, juntamente ao próprio fim espaço-temporal delas. Em verdadeiras obras-primas, como a exemplar Meu Ódio Será Sua Herança(1969) que está sobremaneira evidente a melancólica brutalidade do contexto histórico-geográfico em questão, isto é, o final do século XIX e início do XX no oeste estadunidense e norte-mexicano, outrora selvagens e palco de gloriosas aventuras, mas agora tragados pela modernização veloz correndo com o tempo que exigia pressa. Neste momento, o fim incontornável de uma era, apenas a crueza, simbolicamente poética, de intenções e ações de homens defasados e solitários, mas fortes e determinados, assim era o bravo Oeste de Peckinpah nas telas de cinema do mundo inteiro advindo do fantástico mundo dos faroestes Hollywoodiano. Encerro o texto com um efusivo e caloroso viva à obra do apóstolo da violência!!!
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comente aqui!
Lembre-se: comentários com acusações, agressões, xingamentos, e que citem nomes de familiares de quem quer que seja, não serão publicados.
Opine com responsabilidade!